Publicamos abaixo, por ocasião da Ordenação Presbiteral do Diácono Rafael Oliveira Silva, e em comemoração ao 58º ano da Instalação Canônica da Diocese de Palmares, a íntegra da homilia proferida por Dom Genival Soares de França, durante a Celebração Eucarística realizada na noite do dia 23 de setembro do ano da graça do Senhor de 2020, às 19h, na Catedral Diocesana de Nossa Senhora da Conceição dos Montes.
(Catedral Diocesana de Palmares, 23.09.2020)
Vivemos esta Celebração Eucarística, neste dia 23 de setembro, com sua fisionomia própria, diocesana, porém, em comunhão com a Igreja e o mundo, num contexto sofrido. Com esse olhar, fazemos memória de Dom Henrique Soares que tinha esta Celebração em sua mente e em seu coração. Fazemos uma memória orante, como faz a Igreja ao sufragar a misericórdia de Deus, ao lembrar os mortos, uma memória de fé, esperança e caridade. O povo, em sua sabedoria, diz, há muito tempo, que “a vida é cheia de surpresas”, surpresas agradáveis e desagradáveis. Com efeito, a vida das pessoas, das famílias e das comunidades está sujeita a muitas situações, previstas e imprevistas, que mudam a face de sua história. Assim, a realidade dos Palmares está profundamente marcada pelo contexto mundial, nacional e estadual, em razão da situação provocada pela pandemia do coronavírus. Dom Henrique, uma das muitas vítimas deste vírus, é uma das ausências sentidas pela família diocesana de Palmares, nesta Celebração. Sem precisar de um raciocínio questionador, ouvindo o seu coração sofrido, cada um de nós se dá conta do perfil desta assembleia aqui reunida: esta Matriz, esta Catedral de Nossa Senhora da Conceição dos Montes jamais acolheu os fiéis para a cerimônia de uma Ordenação Presbiteral com a linguagem do seu estado de espírito e das fotos e imagens que registram este momento da história.
Pessoalmente, vivo esta Celebração com vocês, clero e fiéis da Diocese de Palmares, com o olhar e o coração voltados para 23 de setembro do ano 2000, quando, pela imposição das mãos e pela oração consecratória, fui ordenado Bispo para servir à Igreja, por Dom Luís Fernandes, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Acácio Rodrigues Alves e outros Bispos de nosso Regional Nordeste 2. Naquele dia, em Campina Grande, comemorávamos os 38 anos da instalação canônica da Diocese de Palmares e posse de Dom Acácio como primeiro Bispo Diocesano. O exercício do meu ministério tinha como endereço a Diocese de Palmares, onde permaneci, de 28 de outubro de 2000 até 01 de junho de 2014. Muitos de vocês estiveram comigo nesses dois momentos significativos, humana e eclesialmente falando – minha ordenação e posse, e, felizmente, aqui estamos agradecendo esse dom gratuito do amor de Deus. Posso testemunhar, de coração, que me senti plenamente realizado, feliz, por ter vivido esse tempo nesta Diocese. A delicadeza da atenção e a generosidade do coração de Dom Henrique e de vocês, sacerdotes e diáconos, formularam o convite, desde o ano passado, para que eu viesse presidir a Concelebração de Ação de Graças neste 23 de setembro. Aqui estou com o coração muito tocado, com a mente muito agradecida.
Você, caro Diácono Rafael Oliveira Silva, vive esta Celebração com especial significação, com a consciência de receber a graça do Sacramento da Ordem, no grau presbiteral. Dom Henrique, embora não a tendo anotada na agenda, tinha a Celebração de sua Ordenação reservada no seu coração. Você, seguramente, encontra muitas marcas em sua vida da presença formadora de Dom Henrique. Conserve-as como inspiração para uma vida fraterna no clero e um dedicado serviço pastoral na Diocese de Palmares. Vamos vivê-la, você e eu, tendo presente esse denominador comum, essa marca humana de nossa história: o início da alimentação de sua vida vocacional ocorreu enquanto eu exercia o ministério nesta Diocese. Graças à Providência Divina e ao atencioso convite do Pe. Noberto Penzkofer, Administrador Diocesano, e dos membros do Colégio dos Consultores, cria-se entre mim e você um vínculo mais profundo, como é o vínculo entre Deus e você, ao receber o Sacramento da Ordem. Com alegria e agradecimento a Deus, vejo prolongado o meu ministério de Bispo na vida dos dezenove presbíteros diocesanos que ordenei, enquanto exercia o múnus de ensinar, de santificar e de pastorear essa “porção do povo de Deus”, a Diocese de Palmares.
Vamos viver, todos nós, esta Celebração, à luz da Palavra de Deus que acolhemos, na fé. O Profeta Jeremias nos coloca diante do insondável mistério da vocação e de sua missão que, biblicamente, sempre tem Deus como fonte, como origem: “eu te conheci”, “eu te fiz profeta das nações”, “a quem eu te enviar, irás”. Ante a dignidade da vocação, a responsabilidade da missão e o reconhecimento de nossas limitações, também nós nos surpreendemos, embora, comumente, não tenhamos explicitado nossa reação como fez Moisés – “Ah, Senhor, nunca tive facilidade para falar, nem ontem, nem anteontem, nem agora que falaste a teu servo. Tenho a boca e a língua pesadas.” (Ex 4,10), como fez Jeremias – “Ah! Senhor Deus, eu não sei falar, sou apenas um menino.” (Jr 1,6) Não obstante as limitações de cada um deles, Deus os chamou e os enviou em missão. Na Nova Aliança, São Paulo, vocacionado em contexto muito peculiar, tinha plena clareza a esse respeito. “De fato, irmãos, vede vossa vocação: não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família nobre. O que, porém, para o mundo é loucura, Deus o escolheu para envergonhar os sábios; e o que para o mundo é fraqueza, Deus o escolheu para envengonhar aquilo que é forte. O que para o mundo é sem prestígio e desprezível Deus o escolheu, aquilo que é nada, para anular aquilo que é. Assim, ninguém poderá gloriar-se diante de Deus.” (1Cor 1,26-30) Tenhamos consciência de nossas limitações que Deus conhece, ao nos chamar e ao enviar-nos em missão. Faltando-nos isso, caímos no perigo da acomodação, do lugar comum. Esse perigo da acomodação tem se tornado realidade no exercício do ministério ordenado. Nessa linha, permitam-me fazer uma consideração, nesse contexto de pandemia. Neste tempo difícil e diferente, sob todos os aspectos, devido às restrições contidas nas políticas públicas, a Igreja, compreendendo a gravidade da pandemia, manteve fechados os templos e, quando permitido, os reabriu, com participação limitada de fiéis, como ainda acontece. Felizmente, graças aos edificantes exemplos de generosidade e criatividade pastoral de leigos engajados na Pastoral da Comunicação, de pessoas consagradas, sensíveis aos apelos da evangelização e de ministros ordenados, no exercício de seu ofício, a fé foi alimentada à distância, as celebrações falaram ao coração de católicos afastados e a Palavra de Deus chegou a muitos que a desconheciam. Cabe-nos a responsabilidade de manter tudo aquilo que, nessa prática pastoral, representa uma contribuição para o crescimento do Reino de Deus na vida das pessoas. Por outro lado, lamentavelmente, muitos ministros ordenados demonstraram muita imaturidade no uso das redes sociais, muita superficialidade no conteúdo da sua pregação, muito despreparo na linguagem verbal, muito descaso com a dignidade do mistério celebrado, muitas atitudes incompatíveis com o decoro litúrgico. Esses irmãos não se deram conta da sua condição de comunicadores da fé, da versatilidade dos meios de comunicação, da potencialidade do uso adequado das redes sociais, na alimentação da espiritualidade dos fiéis e da ação evangelizadora da Igreja. Tudo isso também nos responsabiliza.
Ao chamar seus discípulos, Jesus não os escolheu entre os sábios, fortes e poderosos, “segundo a carne”. Escolheu-os entre pessoas de origem simples, dentre pescadores e cobradores de impostos. O chamado de Jesus para segui-lo implicou mudança transformadora, começando pela natureza da atividade: “‘Vinde após mim, e eu farei de vós pescadores de homens.’ Então, imediatamente, eles deixaram as redes e o seguiram.” (Mt 4,19-20) Chama-nos a atenção a prontidão dos apóstolos no seguimento de Jesus. Encontramos no Ofício das Leituras, na memória de São Mateus, essa palavra de São Beda Venerável; “Segue-me. Segue, quis dizer, imita; segue, quis dizer, não tanto pelo andar dos pés, quanto pela realização dos atos.” Na passagem do Evangelho, há pouco proclamada, São Mateus nos mostra um desses atos realizados por Jesus: “Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor.” Sensível e solidário, Jesus “compadeceu-se delas”. Continua sendo objeto da sua compaixão a realidade do presente, como a situação em que se encontram multidões de migrantes que saem de sua terra, em razão de perseguição política e da luta pela sobrevivência. De modo generalizado, a pandemia, que tingiu o mapa mundi com as cores do sofrimento, provoca a compaixão de Jesus, sempre identificado com as pessoas “cansadas e abatidas”. Assim como a grande messe a ser colhida necessita de trabalhadores, os grandes desafios do mundo contemporâneo, com suas muitas faces, necessitam de trabalhadores, entre os quais estamos nós do universo religioso, ministerial. Com o sofrimento causado pela morte de milhares de familiares e amigos e por milhões de vítimas do coronavírus, as pessoas, “cansadas e abatidas”, carregam o grande peso das consequências da pandemia “sobre a economia e o trabalho”, apontando um “futuro incerto”; nesse contexto, com certeza, o peso maior é a perda do sentido da vida, marca muito presente na mente de muitas pessoas, como revelam as estatísticas da depressão. Não deixaria de ser preocupante a situação de um ministro ordenado que não se sentisse questionado por tudo que está acontecendo no mundo distante e na realidade ao seu redor, revelando sua sensibilidade, sua solidariedade, sua compaixão, como Jesus.
Caro Diácono Rafael, sua vocação foi sustentada pela prece de muitas pessoas que ouviram o pedido de Jesus: “Pedi, pois, ao dono da messe que envie trabalhadores para a sua colheita.” Você está entre aqueles que Jesus chamou para segui-lo; você é um dos pequenos, dos simples, dos humildes, “tirado do meio dos homens e instituído em favor dos homens”, “cercado de fraquezas”, para “ter compaixão dos que estão na ignorância e no erro”, para ter compaixão dos que sofrem, dos que choram. Sua vocação é seguir Jesus, é imitar Jesus. Ao ser ordenado presbítero, você se configura a “Cristo Senhor, sacerdote eternamente” para ser “sacerdote para sempre, na ordem de Melquisedec.” Guarde no seu coração de sacerdote as lições de vida recebidas de sua família e de sua comunidade paroquial de origem, no período de sua formação inicial. Nesses ensinamentos estão valores humanos e religiosos que, hoje, todos nós reconhecemos como fundamentais no processo de amadurecimento, como pessoa, como cristão, como profissional, como servidor. Tenha sempre um olhar especial para suas casas de formação, para seus formadores, em nível propedêutico e superior, em Palmares, Recife e Caruaru. Não associe esse tempo de sua vida apenas aos registros de notas no seu Histórico Escolar, uma vez que, como ensinam nossos antepassados, “Não aprendemos para a escola, mas para a vida” Sob o aspecto acadêmico, procure criar/manter o hábito da leitura/do estudo/da pesquisa porque isso vai se reverter em proveito da comunidade, dando, dessa maneira, dimensão social ao seu saber individual. A geografia e o tempo vão distanciá-lo de amigos e colegas de Dioceses e Institutos de Vida Consagrada que frequentaram esses centros escolares. Todavia, amizades sólidas não se desfazem com a distância e o passar do tempo; saber cultivá-las é um valor humano. Tenha um zelo muito especial com o presbitério de Palmares; sendo parte dessa família, procure ter como expressão de sua identidade sacerdotal a fraternidade presbiteral. Posso dizer a você e aos irmãos presbíteros que ainda conservo incorporado à minha vida o precioso tempo de pertença ao presbitério, de vivência no presbitério de Campina Grande, de 1965 ao ano 2000.
Guarde no coração essas palavras do Concilio Vaticano II dirigidas aos presbíteros: “Deste modo, exercendo o ministério do Espírito e da justiça, se forem dóceis ao Espírito de Cristo que os vivifica e dirige, firmam-se na vida espiritual. Pelas próprias ações sagradas de cada dia, como também por todo o seu ministério, exercido em comunhão com o bispo e com os outros presbíteros, eles mesmos se orientam para a perfeição da vida.” (Decreto Presbyterorum ordinis) A oração, a espiritualidade eucarística e a devoção a Nossa Senhora são sustentáculos da vida sacerdotal. Incorpore esses bens à sua vida, Diácono Rafael, e seja muito feliz como Sacerdote do Senhor.
A vocês, clero, religiosos/as e fiéis da Diocese de Palmares, o meu muito obrigado pelas expressões de amizade, reafirmadas, de maneira muito especial, nesta Celebração. Que Nossa Senhora da Conceição dos Montes seja sempre nossa Mãe protetora, que o Sagrado Coração de Jesus seja sempre a fonte perene de amor para todos nós.
Palmares (PE), 23 de setembro de 2020
Dom Genival Saraiva de França
Bispo Emérito de Palmares (PE)
Fonte: Núcleo Diocesano da Pascom