“Quem possui a palavra de Jesus, este em verdade, pode ouvir o Seu silêncio, a fim de ser perfeito”. Esta encantadora afirmação de Santo Inácio de Antioquia, Bispo e Mártir do século I, é cheia de profundo significado, capaz de dizer-nos muito ainda hoje.
Estamos acostumados a buscar o Senhor na Sua Palavra. Obviamente, Palavra do Senhor são as Escrituras Santas: “Tua palavra é lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho” (Sl 118/119,105). Mas, palavras do Senhor para nós, de certo modo, é tudo quanto nos vai acontecendo e nos fazendo divisar a presença de Deus, que conduz a nossa vida. Dizemos que Deus nos falou quando conseguimos perceber um sentido, uma mensagem na realidade a nossa volta. Isso é um grande passo: aprender a escutar o Senhor nas Suas palavras, poder dizer: “Tudo me fala de Ti…” como a Virgem ouvinte e crente, que tudo conservava no coração (cf. Lc 2,19).
Mas, e quando tudo parece sem sentido? E quando o aparente e tremendo absurdo desaba sobre nós ou sobre o mundo a nossa volta? E quando gritamos, sem resposta: Minha garganta está pegada ao pó! Dá-me a vida pela Tua palavra!” (Sl 118/119,25)? Eis a ocasião para ainda um passo maior, mais perfeito: quando não compreendemos, quando tudo parece sem sentido, noite fechada, quando tudo parece silêncio de Deus para nós; quando, angustiados e quase sufocados, exclamamos: “Onde está Deus? Cristo meu, por que Te escondes?” Pensemos, por exemplo, no silêncio de um fracasso, de uma doença absurda, de uma humilhação, de uma falta, de uma chaga moral, de morte prematura de alguém a quem amamos… Também aí, é necessário aprender a escutar Aquele que nos fala na Palavra e nos fala no Silêncio: “Quem possui a palavra de Jesus, este em verdade, pode ouvir o Seu silêncio, a fim de ser perfeito” – este o sentido da frase de Santo Inácio de Antioquia. Quando escreveu tal pérola preciosa, ele mesmo estava sendo levado para Roma por dez soldados, para ser jogado às feras. Ele, santo bispo e mártir de Cristo, foi perfeito, pois soube escutar o Senhor na Palavra e no tremendo Silêncio… Ele pôde dizer como o justo Jó: “Ainda que Ele me matasse, Nele esperarei e defenderei diante Dele o meu caminho” (13,15 – tradução da Vulgata).
A escuta perseverante da Escritura Sagrada, a oração silenciosa diante do Senhor, a prática piedosa e ungida dos sacramentos, a capacidade de calar o coração nos diversos acontecimentos e situações da existência, tudo isso vai nos ensinando a compreender a linguagem de Deus que envolve também o momento silencioso da Cruz e da Sepultura do Cristo. “Tremei e não pequeis, refleti no vosso leito e ficai em silêncio. Em paz me deito e logo adormeço, porque só Tu, Senhor, me fazes viver em segurança” (Sl 4,5.9). Eis: o Senhor nosso, Jesus Cristo, falou-nos pela palavra de Seus discursos, de Seus milagres, de Suas belíssimas parábolas. Mas, não esqueçamos que nos falou eloquentemente no silêncio da Sexta-feira Santa e do Grande Sábado da Sepultura.
Um dos grandes desafios dos cristãos de hoje é saber colher a Palavra do Senhor precisamente no Seu Silêncio. Todo mundo – até os pagãos – falam de Deus quando ficam curados, quando conseguem emprego, quando realizam um desiderato. Mas, e quando nada dá certo? E quando vem o tsunami, a seca, a violência, o fracasso? Que belo, que fecundo, que serviço inestimável ao mundo aprender a colher a Palavra do Salvador nesses pesados silêncios e comunicá-la, como luz e esperança ao surdo, loquaz, superficial e agitado mundo de hoje.
Aliás, de um modo ou de outro, foi sempre essa uma das mais nobres tarefas dos cristãos: de Maria de Nazaré, que tudo guardava no coração e, depois de se encher do silêncio de Deus, tornava-o Palavra de força, solicitude e esperança; de Inácio de Antioquia, que gritou a Palavra do Cristo ao ser devorado pelas feras no Coliseu de Roma; de João Paulo II Magno, marcado pelo, sem poder falar ao final da sua vida, de Bento XVI, agora recolhido num silêncio profundo e doloroso… “Eis o que recordarei ao meu coração e por que eu espero: o Senhor é bom para quem Nele confia, para aquele que O busca. É bom esperar em silêncio a salvação do Senhor é bom para o homem suportar o jugo desde a juventude. Que esteja solitário e silencioso quando o Senhor o impuser sobre ele; que ponha sua boca no pó: talvez haja esperança! Que dê sua face a quem o fere e se sacie de opróbrios. Pois o Senhor não rejeita para sempre: se Ele aflige, Ele Se compadece segundo Sua grande bondade. Pois não é de bom grado que Ele aflige os filhos dos homens” (Lm 3,21.25-33).
Ouçamos novamente, pois, as sábias palavras de Santo Inácio: “Quem possui a palavra de Jesus, este em verdade, pode ouvir o Seu silêncio, a fim de ser perfeito”. Que o Cristo, nosso Deus, nos faça perfeitos, cristãos maduros, capazes de ouvi-Lo nos silêncios que a vida nos prepara.
Para concluir, umas palavras estupendas do Cardeal Ratzinger, que iluminam bem o que quero exprimir:
“O mistério terrível do Sábado Santo, seu abismo de silêncio, adquiriu em nosso tempo uma realidade opressiva. De modo que isto é o Sábado Santo: o dia do ocultamento de Deus, o dia daquele paradoxo inaudito que nós exprimimos no Credo com as palavras “desceu à mansão dos mortos”, desceu para dentro do mistério da morte. Na Sexta-feira Santa, ainda se podia olhar para o Transpassado. O Sábado Santo está vazio, a pesada pedra do sepulcro novo encerra o defunto, tudo já passou, a fé parece estar definitivamente desmascarada como fanatismo. Nenhum Deus salvou esse Jesus que se arvorava em Filho Dele. Todos podem ficar tranquilos: os prudentes, que inicialmente haviam titubeado um pouco em seu íntimo, na dúvida de que talvez tudo não fosse verdade, agora sabem que tinham razão.
Sábado Santo: dia do sepultamento de Deus; não é isso, de maneira impressionante, o nosso dia? O nosso século não começa a ser um grande Sábado Santo, dia da ausência de Deus, no qual até os discípulos têm um vazio congelante no coração, que aumenta cada vez mais, e por isso se preparam, cheios de vergonha e angústia, para voltar para casa, e se dirigem taciturnos e destroçados, em seu desespero, para Emaús, sem se dar conta em hipótese alguma de que Aquele que acreditavam morto está entre eles?
Deus morreu e nós O matamos: será que nós percebemos mesmo que essa frase é tomada quase ao pé da letra pela tradição cristã, e que nós muitas vezes em nossas “Vias-sacras” já repetimos algo semelhante sem nos darmos conta da gravidade tremenda do que dizíamos? Nós O matamos, encerrando-O no invólucro rançoso dos pensamentos habituais, exilando-O numa forma de piedade sem conteúdo de realidade e perdida entre frases feitas ou preciosidades arqueológicas; nós O matamos por meio da ambiguidade da nossa vida, que estendeu um véu de escuridão também sobre Ele: de fato, o que mais poderia ter tornado Deus problemático neste mundo, senão a problematicidade da fé e do amor daqueles que creem Nele?
A escuridão divina deste dia, deste século que se torna em medida cada vez maior um Sábado Santo, fala à nossa consciência. Nós também estamos implicados nela. Mas, apesar de tudo, ela tem em si algo de consolador. A morte de Deus em Jesus Cristo é ao mesmo tempo expressão de Sua radical solidariedade conosco. O mistério mais obscuro da fé é ao mesmo tempo o sinal mais claro de uma esperança que não tem limites. E mais uma coisa: só por meio da derrota da Sexta-feira Santa, só por meio do silêncio mortal do Sábado Santo, os discípulos puderam ser levados à compreensão do que Jesus era realmente, e do que a Sua mensagem significava na realidade. Deus tinha de morrer para eles, para que pudesse realmente viver neles. A imagem que haviam formado de Deus, na qual haviam tentado comprimi-Lo, tinha de ser destruída para que eles, a partir das ruínas da casa derrubada, pudessem ver o céu, e o próprio Deus, que continua a ser sempre o infinitamente maior. Nós precisamos do silêncio de Deus para experimentar novamente o abismo da Sua grandeza e o abismo do nosso nada, que viria a se escancarar se não fosse Ele.
Há uma cena no Evangelho que antecipa de maneira extraordinária o silêncio do Sábado Santo e parece, portanto, mais uma vez ser o retrato do nosso momento histórico. Cristo dorme numa barca, que, agitada pela tempestade, está para afundar. O profeta Elias zombou uma vez dos sacerdotes de Baal, que inutilmente invocavam em alta voz o seu deus para que fizesse descer o fogo do sacrifício, exortando-os a gritarem mais forte, pois podia ser que seu deus estivesse dormindo. Mas Deus não dorme realmente? O escárnio do profeta não diz respeito também, no fundo, àqueles que creem no Deus de Israel e que viajam com Ele numa barca que está para afundar? Deus dorme enquanto Suas coisas estão para afundar, não é essa a experiência da nossa vida? A Igreja, a fé, não se parecem com uma pequena barca que está para afundar, que luta inutilmente contra as ondas e o vento, enquanto Deus está ausente? Os discípulos gritam no desespero extremo e sacodem o Senhor para despertá-Lo, mas Ele Se mostra admirado e repreende a pouca fé deles. Mas é diferente para nós? Quando passar a tempestade, nós perceberemos o quanto a nossa pouca fé estava cheia de tolice.
Todavia, ó Senhor, não podemos deixar de sacudir-Te, Deus que estás em silêncio e dormes, e de gritar-Te:
acorda, não vês que estamos afundando?
Desperta, não deixes que dure eternamente a escuridão do Sábado Santo,
deixa cair um raio de Páscoa também sobre os nossos dias,
acompanha-nos quando nos dirigimos desesperados para Emaús, para que o nosso coração possa acender-se ao nos aproximarmos de Ti.
Tu, que guiaste de maneira oculta os caminhos de Israel para seres finalmente homem com os homens,
não nos deixes no escuro,
não permitas que a Tua palavra se perca no grande desperdício de palavras deste tempo.
Senhor, dá-nos a Tua ajuda, pois sem Ti afundaremos. Amém”.
Fonte: https://visaocristadomhenrique.blogspot.com/2019/06/descobrir-no-silencio-palavra.html?m=1