Palmares, 04 de outubro de 2024

As bestas, as besteiras e o Cordeiro

04 de julho de 2019   .    Visualizações: 1058   .    Palavra do Bispo

Quando meditamos sobre o precioso Livro do Apocalipse, constatamos, edificados a convicção dos cristãos de que há um Senhor nos Céus e, portanto, há um rumo e um sentido para a história e a vida do mundo; em última análise, há um sentido e um rumo para a minha existência pessoal.

No capítulo 13 deste última livro da Escritura Santa, há uma imagem inquietante e atual, a ser interpretada com profundidade e lucidez: João vê uma besta (cf. 13,1) de dez chifres (símbolo de força, de poder militar e agressividade), dez diademas (símbolo da realeza, do poder político) e sobre as cabeças, um nome blasfemo (porque essa besta quer assumir o poder e o papel de Deus). A besta tinha poder, trono e grande autoridade; possuía até uma ferida mortal, que foi curada. E o mundo, cheio de admiração, seguiu a besta, pois dizia; “Quem é como a besta?” E a adorou dizendo: “Quem pode lutar contra ela?” Essa besta recebeu poder de guerrear contra os cristãos e vencê-los, bem como autoridade sobre toda a humanidade. Havia ainda uma outra besta (cf. 13,11)…

A linguagem, claro, é simbólica e mítica. Mas, o significado é contundente, atual e de um realismo perturbador. Basta ver as perseguições explícitas ou veladas em relação aos cristãos; basta constatar o ridículo a que a nossa santa fé e os verdadeiros e simples discípulos do Senhor são submetidos…

Quem são essas bestas? São tudo aquilo que no mundo pretende fazer passar-se por Deus, toda instituição, ideologia, moda ou projeto humano que pense poder assenhorear-se do mundo, da Igreja, das consciências, do destino das pessoas; são toda ideologia que pretenda abarcar a totalidade da realidade e da existência, impondo-se de modo arbitrário. As bestas são todos os tiranos e tiranias da história. Podem ser o racionalismo, o nazismo, o fascismo, o socialismo, com sua ânsia de reduzir a pessoa a engrenagem de um estado divinizado, chegando a perseguir, a matar, a violentar as consciências em nome de uma pretensa justiça social, o capitalismo quando selvagem e sem critérios morais, que dá à luz o monstro de uma sociedade consumista, hedonista e rasa de valores; as bestas podem ser uma certa globalização, quando conduzida simplesmente com base no consumo e no politicamente correto. As bestas podem ser os meios de comunicação, com sua tirania, sua mentira, seu serviço à desinformação, plasmando uma opinião mundial fechada aos valores religiosos e à transcendência.

A besta é um triste arremedo do verdadeiro Deus. O poder dela, sua grandeza e força, são ilusórios. Mas, que ela engana, engana! As pessoas, admiradas, se perguntam: “Quem é como a besta?” – Trata-se, aqui, de um arremedo do nome bíblico Miguel, que significa “quem é como Deus?” Nesse capítulo 13 do Apocalipse, ela parece forte e imbatível: estava ferida mortalmente e foi curada. Ela parece eterna…

E, no entanto, o número da besta é um número de homem: 666! A ironia é gritante! Na Bíblia, 6 significa aquilo que não é pleno, que é passageiro, pois é 7 (perfeição, completude) menos 1. Lembremo-nos que o homem foi criado no sexto dia. Ele não é Deus, ele não é pleno em si mesmo, ele não é o senhor absoluto dos planos e dos sonhos; é livre, mas sua vida está nas benditas mãos do Eterno! Como exclamava o Profeta Jeremias: “Eu sei, Senhor, que não pertence ao homem o seu caminho, que não é dado ao homem que caminha dirigir seus passos” (10,23).

O homem não é homem simplesmente porque é racional; ele é homem e é humano porque é o único ser capaz de um diálogo com o seu Criador. É o único ser que sabe que existe, que sabe apreciar o dom de viver e que sabe que caminha para a morte; e deve enfrentá-la como entrada numa plenitude ou mergulho num nada absurdo. O número do homem é 6: perto da plenitude, somente abrindo-se para o Infinito pode chegar à plenitude!

O número da besta é 666. Três vezes 6, três vezes incompleta, três vezes humana… Absolutamente incompleta, falível, frágil, humana, por mais que deseje parecer eterna, forte e divina! Com ironia finíssima, o Autor do Apocalipse diz: “Aqui é preciso discernimento! Quem é inteligente calcule o número da besta, pois é um número de homem!” A besta de plantão da época era o Império Romano, com seu imperador Domiciano, perseguidor maior dos cristãos. E a besta hoje? “Quem é inteligente, calcule o número da besta!”

Mas, além da imagem da besta (e das bestas), há um outro animal: um Cordeiro (cf. 14,1). É imagem do Cristo. O Leão da tribo de Judá é apresentado manso e humilde, frágil e indefeso, como um Cordeiro imolado (cf. 5,6). É uma imagem fascinante! O que pode um cordeiro contra um animal como a besta, com corpo de leopardo, patas de urso e boca de leão? O que pode um Cordeiro imolado, cujo lado estará continuamente ferido, aberto, contra um animal que, ferido mortalmente, volta a viver, como que ressuscitando sempre? O que pode a fé num Deus crucificado e impotente contra o mundo atual, com sua pretensa ciência, sua tecnologia, seu poder de persuasão e comunicação, sua riqueza de recursos e argumentação? O que pode a fraqueza do Evangelho contra um mundão que entra sem pedir licença em nossas casas e nossas vidas, impregna o nosso coração e invade famílias, destrói ideais e subverte valores?

E, no entanto, é o Cordeiro imolado – eternamente imolado, de cujo lado saem a água do Batismo e o sangue da Eucaristia -, que vencerá a besta que sempre teima em curar suas feridas. É o Cordeiro imolado que estará sempre de pé, vitorioso. Ele, que pode aquietar nossos sonhos, realizar nossos mais profundos anseios de vida, beleza, verdade, paz, amor e eternidade. É o Cordeiro quem nos apascentará e nos conduzirá às fontes da Vida… O Cordeiro que parece frágil, derrotado, ferido de morte.

Meu caro “Irmão e companheiro na tribulação, na realeza e na perseverança em Jesus” (Ap 1,9), quis partilhar com você esta meditação porque muitas vezes nos iludimos na busca de um cristianismo triunfalista, que de modo pagão, imagina um poder de Deus, um triunfo do Cristo numa moldura de grandeza humana, de prestígio, de aliança com os grandes, de capitulação e adulação ante as ideologias e modas politicamente corretas e de reconhecimento pelo mundo. Não é nem pode ser esse o caminho!

O cristão deve ser livre e libertador! Livre porque, sabendo apreciar e valorizar tudo quanto de bom o mundo oferece, não se encanta com nada, não atola seu coração em nada, porque sabe que tudo passa e é provisório… O cristão também não teme as bestas, não se admira nem se dobra ante sua grandeza. Por isso mesmo, é nosso dever, com paciência, humor e firmeza, denunciar todos os projetos humanos que tenham a aparência de solução definitiva, caminho mágico, verdade suprema para a humanidade. Só em Cristo, o Cordeiro imolado, o cristão ancora a sua vida e a sua esperança.

Cuidemos de ser precavidos com as bestas. Cuidemos de não nos entusiasmar demais com as modas do momento, absolutizando aquelas coisas que passam tão depressa e são humanamente ilusórias. Cuidemos de ser inteligentes para viver o presente intensamente, mas com o coração atento à Eternidade. Cuidemos de viver como aqueles que – usando ainda uma imagem do Apocalipse – “estão inscritos no livro da Vida do Cordeiro” (21,27).

Dom Henrique Soares da Costa

Bispo de Palmares

Fonte: https://visaocristadomhenrique.blogspot.com/2019/07/as-bestas-as-besteiras-e-o-cordeiro.html?m=1